domingo, 27 de maio de 2007

Todos contra o glúten

SAÚDE & BEM-ESTAR
Todos contra o glúten
Por que a proteína presente naturalmente no trigo é acusada de ser o mais novo inimigo da saúde
Por SUZANE FRUTUOSO
Pão quentinho, pizza crocante, bolo de chocolate. Esses prazeres corriqueiros são um perigo para a saúde de um grupo de pessoas: os portadores de doença celíaca, distúrbio genético que prejudica o funcionamento do intestino delgado e a absorção de nutrientes. Essas pessoas têm intolerância ao glúten, proteína presente no trigo, no centeio, na aveia, no malte e na cevada. Caso o celíaco não evite alimentos com a substância, poderá sofrer desde desconfortos gastrintestinais até doenças graves, como osteoporose e câncer de intestino. Isso é conhecido pela medicina e pelos consumidores há muitas décadas. Mas nos últimos meses o glúten vem sendo acusado de fazer mal a uma parcela muito maior da população.
Nos Estados Unidos, ele tem sido apontado como deflagrador de problemas em pessoas que nunca tiveram a intolerância à proteína constatada por exames. Alergias de pele? Dor de estômago? Infertilidade? Depressão? Culpa do glúten, acreditam muitos americanos. Alguns pacientes dizem que bastou excluir a proteína da dieta e os problemas desapareceram. Até que ponto a acusação faz sentido?
Não há como negar o efeito negativo do glúten sobre os celíacos. Ele contém uma substância tóxica chamada gliadina, que desencadeia os sintomas em quem já nasce com uma predisposição genética ao distúrbio. No Brasil, estima-se que uma em cada 600 pessoas seja celíaca. Com deficiência de nutrientes e baixa imunidade, o organismo pode apresentar problemas como alergias, infertilidade, ansiedade e até mesmo depressão. A ligação do glúten com essas doenças faz sentido no caso dos celíacos. Mas muitos dos mecanismos de ação ainda são desconhecidos pelos médicos. O que não faz sentido para a maioria dos especialistas é acusar o glúten de ser a causa desses problemas em pessoas que não são intolerantes a ele.
"É um modismo. Mais uma maluquice sem comprovação científica", diz a gastrenterologista infantil Vera Lucia Sdepanian, da Universidade Federal de São Paulo. Segundo ela, a onda de difamação do glúten é provocada por desinformação. Pessoas que não são sensíveis à substância mas apresentam doenças que podem acometer os celíacos encontraram uma explicação precipitada para seus problemas.
Ninguém sabe como esse movimento começou. Uma das hipóteses, nos Estados Unidos, é que a polêmica teria sido iniciada por profissionais da medicina alternativa, como quiropráticos e acupunturistas. "Muitos praticantes de tratamentos alternativos pegam sua bola de cristal e saem dizendo às pessoas que elas têm intolerância ao glúten", afirmou o gastrenterologista Don Powell, da Universidade do Texas. Para Hong Jin Pai, presidente da Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura, afirmações como essa prejudicam a reputação da medicina oriental. "Jamais aconselharia um paciente a retirar o glúten da dieta se não fosse comprovada a necessidade disso. Não trato hipóteses com acupuntura."
A constatação de intolerância ao glúten é feita por meio de um exame de sangue específico. Depois, é confirmada por biópsia. O paciente é submetido a uma endoscopia e, com uma pinça, o médico retira fragmentos do intestino delgado. Se nesses fragmentos forem encontradas alterações que impeçam a absorção de nutrientes, o glúten deve ser evitado. Outra explicação para a boataria pode ter sido a apresentação nos Estados Unidos de estudos parciais que apontavam uma possível alergia temporária ao glúten. "Mas os trabalhos não são consistentes", diz a gastrenterologista infantil Maraci Rodrigues, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Algumas pessoas têm alergia ao glúten. Ela não é temporária. Sempre que a proteína é ingerida, o organismo reage com vermelhidões na pele, diarréia, vômito. Em casos graves, a respiração pode ser interrompida.
O glúten não é um nutriente essencial para a saúde. Os consumidores podem muito bem viver sem ele, resistindo a alguns prazeres. "A pessoa precisa estar disposta a abrir mão de uma cervejinha gelada", diz o nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia.
A vida sem glúten também é mais cara. Um pacote de macarrão sem glúten, por exemplo, custa 50% a mais que o produto convencional. Esse é um mercado em expansão. Nos Estados Unidos, produtos livres de glúten movimentavam cerca de US$ 200 milhões no começo da década. A estimativa para 2010 é que as vendas alcancem US$ 1,7 bilhão.
No Brasil, as alternativas para quem não pode - ou não quer - ingerir glúten aumentaram, embora ainda sejam restritas. Um exemplo é a rede americana de restaurantes Outback Steakhouse. Ela é uma das poucas que oferecem no cardápio opções de pratos sem glúten. "É uma política internacional da empresa", diz a gerente de Comunicação, Elen Cunha. Um dos itens mais procurados é um brownie de chocolate sem farinha. Segundo a empresa, outros pratos podem ser preparados sem a proteína. Basta o cliente pedir. Mas não há razão para banir o glúten da dieta - a menos que os exames tenham comprovado que ele é a raiz dos problemas.
O que se sabe sobre os efeitos do glúten
Ele é a principal proteína do trigo. É encontrado também no centeio, na cevada, no malte e na aveia. Contém uma substância que, em algumas pessoas, pode desencadear dois problemas
Alergia alimentar
O que é
Consequências
Surge quando o organismo é sensível ao glúten. A alergia é semelhante à provocada em algumas pessoas por outros alimentos, como leite, chocolate ou camarão
A reação é imediata. Podem surgir vermelhidões na pele, gases, dores de estômago, diarréia, vômitos e até impossibilidade de respirar (edema de glote)
Doença celíaca
O que é
Consequências
Distúrbio causado pela intolerância ao glúten. O corpo libera substâncias que danificam a mucosa do intestino. O órgão deixa de absorver os nutrientes dos alimentos
Sem nutrientes, o organismo enfraquece e perde imunidade. Podem ocorrer diarréia, emagrecimento, dores de estômago, anemia, coceira e bolhas na pele
Outros danos possíveis
• Manchas nos dentes• Osteoporose• Aborto espontâneo• Infertilidade• Convulsões• Ansiedade• Depressão
A Polêmica
Os cientistas reconhecem a possível relação do glúten com esses problemas.
Mas não sabem como ele poderia causar os danos. Segundo o conhecimento atual, esses males podem ocorrer apenas nas pessoas que sofrem de doença celíaca. Há suspeitas de que possam atingir uma parcela maior dos consumidores
Suzane Frutuoso
Foto: Frederic Jean/ÉPOCA

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